04/10/2010

Bugio (Ilha do), Bugia (Fonte da) e Bugiaria (Sítio da)

Bugio
(Foto do Serviço do Parque Natural da Madeira)

Gaspar Furtuoso (1522 - 1591), nas Saudades da Terra, ao descrever «o descobrimento das ilhas chamadas desertas, e cujas são e do que nelas há, e de algumas coisas de outras duas ilhas chamadas salvages» e sobre a Ilha Deserta, diz-nos o seguinte:
(…) «Apegado com esta o terço de meia légua jaz outra ilha, mais pequena e estreita para a banda do mar, de uma légua, ou pouco mais, de comprido, que também tem gado miúdo e fina urzela, de que se tira proveito: chama-se Cu de Bugio, pela aparência que disso tem quem bem olhar da ilha Deserta, que mais parece calos deste animal que ilha, nome posto pelos antigos, sem mais outra razão alguma; onde se criam muitas cabras bravas nas rochas, que, a tempos, vão tomar com cães. (…). Ainda mais adiciona Gaspar Furtuoso que: «Da baía da cidade do Funchal, da ilha da Madeira, ao Cu de Bugio, que está com ela noroeste-sueste, haverá treze léguas, e a Deserta com Cu de Bugio está norte e sul e noroeste sueste com a ilha da Madeira, e são seis léguas antre ela e a mesma ilha da Madeira; e desta Deserta ao ilhéu Chão está um canal estreito, por onde não passam senão barcos pequenos, o qual ilhéu está também na mesma rota de noroeste sueste com a ilha da Madeira. Ao sul da ilha da Madeira, antre ela e as Canárias, que todas demoram dela (como disse), pouco mais ou menos, do sul até o sueste, estão em trinta graus duas ilhas, que se chamam as Salvagens (sic), por serem ermas e desconversáveis, assim de navegação como de gente, e uns perigosos baixos, em distância de trinta léguas da mesma ilha da Madeira e três léguas antre si uma da outra; as quais pode ser que serão do número das doze que diz João de Barros que se dizem Canárias. Terá cada uma compridão de meia légua. A que está da banda do sudoeste, que é a mais pequena, tem muitos baixos, e quem quiser passar por antre elas achegue-se bem à ilha da banda do nordeste, que é a maior, sem medo, e não terá perigo. Estão norte e sul com o Cu de Bugio.» (…)

Arco da Calheta - Fonte da Bugia - Calheta
(Foto do autor)

Segundo Dicionário da Língua Portuguesa, 6.ª Edição, da Porto Editora (Costa e Melo, 1990), o termo «bugio» provem do árabe vulgar, «buyíya, nome da cidade africana de Bugia» (Bougie ou Béjaïa em francês), localizada no litoral da Argélia «donde os macacos eram originários» e desta forma apelidados pelo topónimo argelino. «Bugia» é a fêmea do macaco africano denominado de «bugio». Neste contexto, o termo «bugio» é sinónimo de macaco. Por outro lado, segundo os mesmos autores, «bugia», analogamente, poderá significar uma pequena «vela de cera» em virtude de este produto ser originário da citada cidade argelina (Costa e Melo, 1990). A cera importada desta cidade fazia parte das rotas comerciais mediterrânicas e daí os franceses apelidar as velas de bougie, igualmente, com origem no mesmo topónimo.
Poderemos ainda acrescentar, salvo melhor opinião, que as palavras «bugio» e «bugia» fizeram parte da cultura mediterrânica e portuguesa. A prova disso é que o termo «bugiada» poderá designar uma «porção de bugios» ou uma «macacaria». Uma «bugiaria», poderá designar: «gestos de bugio; macaquice; bugiganga; ninharia» (Costa e Melo, 1990). Assim sendo, o topónimo argelino, fez parte da linguagem dos portugueses para classificar tudo o que fosse parecido com o «bugio» ou macaco, tanto na sua aparência como na sua conduta. O termo «bugio» e os seus derivados, caíram em desuso através dos séculos, mas foi guardado na toponímia continental e insular, assim como, no mundo que fala o português. Poderemos dar exemplos, como topónimo continental: a Bugia, no concelho de Fornos de Algodres, Guarda, e como topónimos insulares: a Fonte da Bugia, Arco da Calheta, Calheta; o sítio da Bugiaria, São Roque, Funchal; a Ilha do Bugio, Ilhas Desertas, Funchal. Ainda poderemos encontrar o uso do termo atrás citado nas tradições populares portuguesas, como a Festa da Bugiada. Esta festa realiza-se anualmente, no Sobrado, Valongo no dia 24 de Junho, de a invocação a São João. Até o «corpulento macaco americano, com o queixo barbado» foi apelidado de Bugio, no Brasil onde também é conhecido por barbado, guariba, etc., para além do citado termo ser usado como topónimo neste país.
Portanto, não poderemos estranhar que chegando os primeiros navegadores portugueses ao arquipélago madeirense, ao olharem para as Ilhas Desertas, a última destas para os lados do sul, chamaram de «Cu de Bugio, pela aparência que disso tem quem bem olhar da Ilha Deserta, que mais parece calos deste animal que ilha, nome posto pelos antigos», como nos narra Gaspar Furtuoso.

São Roque - Sítio da Bugiaria - Funchal
(Foto do autor)


Ilhas Desertas: o Bugio

As Desertas são ilhas oceânicas de origem vulcânica com a idade de cerca de 3,5 milhões de anos, segundo os especialistas. No início da sua formação eram uma única ilha ao que parece. São parte integrante do mesmo edifício vulcânico que formou a Ilha da Madeira. Ainda mais poderemos acrescentar que, as Ilhas Desertas são o resultado dos últimos períodos da actividade vulcânica na Madeira. Depois de cessada essa actividade vulcânica, as ilhas foram assumindo até os nossos dias o actual aspecto geomorfológico com a colaboração dos agentes erosivos. A sua orografia é resultante da sua constituição geológica aliada à permanente acção do mar conhecida por abrasão marinha. Em consequência deste fenómeno, actualmente, estão separadas por boqueirões. As Desertas são constituídas por formações basálticas, tufos e escórias vulcânicas (Carvalho e Brandão, 1991). Estas ilhas adjacentes à Ilha da Madeira, pelo prolongamento da Ponta de São Lourenço, acompanharam desde sempre a sua história. Desde o reconhecimento e povoamento que foram parte integrante da Madeira por lhe serem próximas. São observadas a partir do Funchal, a uma distância de cerca de 22 milhas náuticas. Das três ilhas que compõem este sub-arquipélago da Madeira e muito idêntica à Deserta Grande, a Ilha do Bugio, é a mais acidentada e recortada das ilhas. É comprida e estreita com a forma de um arco encurvado de norte para sudeste e tem uma superfície de 3 km2. Estende-se ao longo de 7500 metros de comprimento desde a Ponta do Cágado, a norte, à Ponta da Agulha, a sul e atinge a largura máxima de 700 metros. A altitude máxima é de 388 metros. A linha de costa é irregular e orlada por vezes por estreitas e pequenas praias de calhau rolado. Existem também várias grutas ao longo da costa (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005). A sul da Ilha do Bugio existe um pequeno farol.

Bugio
(Visto da Deserta - foto do autor)

O clima das Ilhas Desertas é classificado de temperado oceânico, em parte devido à sua situação oceânica. Nestas Ilhas, amplitudes térmicas do ar são reduzidas, e igualmente, as variações da temperatura da água do mar são diminutas ao longo do ano. Esta, pode atingir temperaturas da ordem dos 24°C no Verão e dos 17°C no Inverno (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005). As precipitações são pouco abundantes e as ilhas só são atingidas por fortes chuvas quando as tempestades que se formam no Atlântico vindas de sul e de sudoeste atingem a Madeira. O vento dominante é dos quadrantes norte e nordeste. Em termos oceanográficos, as Ilhas Desertas estão sob a influência da corrente fria das Canárias, que constitui um braço descendente da corrente do Golfo. As correntes marítimas fazem-se sentir mais na Deserta Grande do que no Ilhéu Chão e no Bugio (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005).

Bugio
(Foto do autor)

A flora das Ilhas Desertas é abastada em plantas específicas da Macaronésica, onde apresenta exclusividades madeirenses e três endemismos da Deserta Grande, uma hepática (Frullania sergiae) e duas espermatófitas (Sinapidendron sempervivifolium e Musschia isambertoi). A flora vascular é constituída por cerca de 200 espécies indígenas e naturalizadas. Das indígenas, 30 (15%) são endemismos da Ilha da Madeira e 19 (10%) são endémicas da Macaronésia, (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005). Existem grupos de plantas e vestígios de outras que, em outros tempos, teriam tido a maior área de expansão. Nas escarpas rochosas é possível encontrar árvores e arbustos, que indiciam a existência no passado de matas ou comunidades florestais (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005). Os primeiros estudos sobre a vegetação das Ilhas Desertas foram efectuadas por Richard Thomas Lowe em 1868.
O Bugio apresenta menor variedade vegetal. No seu litoral existem extensas áreas dominadas por Calendula maderensis e Bassia tomentosa, associadas a outras plantas halófilas como as barrilhas Mesembryanthemum crystallinum, M. nodiflorum, e Suaede vera. Nas suas escarpas rochosas predominam os líquenes, principalmente de urzela, (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005), outrora, foram exploradas para o uso na indústria tintureira.

Formações rochosas
(Foto do autor)

Historicamente, foram introduzidos nas Ilhas Desertas três grupos de vertebrados: a cabra (Capra hircus), o coelho (Oryctolagus cuniculus) e o murganho (Mus musculus). A introdução dos dois primeiros, provavelmente no século XV, deveu-se às tentativas de colonização destas ilhas pelos madeirenses. Estes animais conduziram à degradação do coberto vegetal, principalmente, na Deserta Grande e no Bugio, desenvolvendo erosão das ilhas. No Bugio a cabra também foi introduzida, provavelmente oriunda das Ilhas Canárias. No âmbito do projecto LIFE “SOS Freira do Bugio”, estão consideradas medidas para a monitorização dos herbívoros naquela Ilha, (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005).
Ainda relativamente à fauna vertebrada, o lobo-marinho é a espécie mais importante e simbólica das Ilhas Desertas, assim como, várias espécies de aves marinhas que nidificam nas Desertas, que se incluem nas ordens Procellariiformes e Charadriiformes. Nos Procelariformes (aves marinhas pelágicas) incluem-se a cagarra (Calonectris diomedea borealis), a alma-negra (Bulweria bulwerii), o roque-de-castro (Oceanodroma castro), o pintainho (Puffinus assimilis baroli) e a freira do Bugio (Pterodroma feae). Nos Charadriformes, temos as aves marinhas não pelágicas onde se incluem a gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis) e o garajau-comum (Sterna hirundo), (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005). No Bugio nidifica a endémica freira do Bugio, uma das aves mais ameaçadas a nível mundial. A Deserta Grande suporta a maior colónia de alma-negra do Atlântico e possivelmente do Mundo, desempenhando um papel vital para a conservação desta espécie. Algumas das espécies de aves que ocorrem nas Desertas constam do anexo I da Directiva 79/409/CEE - Tabela 5, (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005).

Bugio
(Visto do Funchal - foto do autor)

Outras espécies de animais de interesse comunitário (anexo B-IV), são protegidas e a sua captura ou colheita na natureza e exploração são objecto de medidas de gestão (anexo B-V), são: todas as espécies de cetáceos; a lagartixa (Teira dugesii mauli); e o molusco (Discus guerinianus), (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005).
As Ilhas Desertas encontram-se legalmente protegidas desde 1990, passando em 1995 a Reserva Natural. Em 1992, foram classificadas de Reserva Biogenética pelo Conselho da Europa, como reconhecimento do grande interesse do seu Património Natural. São igualmente uma “Important Bird Area” (IBA), uma Zona de Protecção Especial (ZPE). Desde Dezembro de 2001 são um Sítio da Rede Natura 2000, (Serviço do Parque Natural da Madeira, 2005).
As Ilhas Desertas estão situadas no Atlântico Norte, entre os paralelos 32º 24' 05" e 32º 35' 20" N e os meridianos 16º 27' 45" e 16º 32' 30" W.

Deserta e Bugio
(Vistas do Funchal - foto do autor)

Bibliografia:

CARVALHO, A. M. Galopim de e BRANDÃO, José M. (1991). Geologia do Arquipélago da Madeira. 1.ª Edição. Museu Nacional de História Natural (Mineralogia e Geologia) da Universidade de Lisboa. Lisboa.
COSTA, J. Almeida e MELO, A. Sampaio (1990). Dicionário da Língua Portuguesa. Dicionários "Editora". 6.ª Edição, Porto Editora Lda. Porto.
FRUTUOSO, Gaspar (1522-1591). Saudades da Terra. Livro II, Doutor Gaspar Frutuoso. [Palavras prévias de João Bernardo de Oliveira Rodrigues] - Nova edição de 1998. Instituto Cultural de Ponta Delgada. Ponta Delgada.
INSTITUTO Hidrográfico. Carta Náutica. Arquipélago da Madeira N.º 33101.
JARDIM, Roberto e FRANCISCO, David (2000). Flora Endémica da Madeira. 1.ª Edição, Múchia Publicações. Funchal.
NEVES, Henrique Costa e VALENTE, Ana Virgínia (1992). Conheça o Parque Natural da Madeira. Secretaria Regional da Economia. Parque Natural da Madeira. Funchal.
OLIVEIRA, Paulo (1999). A Conservação e Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira. Secretaria Regional de Agricultura, Florestas e Pescas. Serviço do Parque Natural. Funchal.
SECRETARIA Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais (2005). As Ilhas Desertas. Serviço do Parque Natural da Madeira. Funchal.
SERVIÇO Cartográfico do Exército. (1974). Carta Militar. Serie P 821. Edição 1 - S. C. E. P. (Trabalhos de Campo de 1965). Lisboa.
SILVA, Padre Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de (1984). Elucidário Madeirense. Fac-símile da edição de 1946. Secretaria Regional de Turismo e Cultura - Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Funchal.
SILVA, Padre Fernando Augusto da (1934). Dicionário Corográfico do Arquipélago da Madeira. Edição do Autor. Funchal.

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