07/03/2010

Funchal depois da Aluvião: a nova Cidade

Cidade do Funchal - Madeira
(Em 7 de Março de 2010 - foto do autor)

Por ocasião do descobrimento ou reconhecimento da ilha da Madeira por «João Gonçalves» e os seus companheiros, conta-nos Gaspar Frutuoso que, «chegados ao formoso vale, que de lisos e alegres seixos era coberto, sem haver outro género de arvoredo, senão muito funcho que cobria o vale até o mar por bom espaço, saíam deste deleitoso vale ao mar três grandes e frescas ribeiras, ainda que não tão soberbas, na aparência, como a de Machico; eram, porém, muito formosas por todas virem acabar no mar, saídas deste vale. E, pelo muito funcho que nele achou, lhe pôs nome o Funchal (onde depois fundou uma vila de seu nome, que já, neste tempo, é uma nobre e sumptuosa cidade), no cabo do qual estão dois ilhéus, onde se foram abrigar por ser já tarde, e tomou em terra água e lenha com que fizeram de cear, em um deles, de muitas aves que tomaram; depois disto foram dormir aos barcos e, como foi manhã, passaram mais abaixo. E, chegados a uma ponta, que no dia dantes tinham visto, mandou o capitão pôr nela uma cruz, donde lhe ficou o nome Ponta da Cruz. Dobrando esta ponta, foram dar em uma formosa praia que, pela formosura e assento dela, lhe pôs nome a Praia Formosa.»
Acompanhando João Gonçalves no seu descobrimento ou reconhecimento, mais acrescenta Gaspar Frutuoso que, «pelo modo acima declarado, com seus batéis e companhia, antre duas pontas viram entrar no mar uma poderosa e grande ribeira, na qual pediram uns mancebos de Lagos licença para saírem em terra e ver a ribeira, que espaçosa e alegre parecia. E, ficando o capitão com os outros no batel, os mandou lançar fora pelo barco de Álvaro Afonso, os quais, em terra, cometeram passar a ribeira a vau e, como ela era soberba em suas águas, corria com tanto ímpeto e fúria ao mar, que na veia da água caíram e a ribeira os levava, onde correram sem falta perigo, se o capitão do mar não bradara ao batel de Álvaro Afonso, que em terra estava com a gente, onde eles foram, que corressem depressa àqueles mancebos, que a corrente da ribeira levava, às vozes do qual foram os mancebos acorridos e livres do perigo da água, com que o capitão ficou contente, porque os trazia nos olhos; e daqui ficou o nome à ribeira, que hoje, este dia, se chama Ribeira dos Acorridos, que peor pareceu àqueles mancebos de perto, do que lhe pareceu primeiro de longe.»

Idem foto anterior
(Foto do autor)

Depois de passarem por Câmara de Lobos, «da ponta do mar viram uma rocha muito alta, logo aí apegado e arrebentar no mar em uma ponta que ela abaixo fazia, a qual lhe ficou por meta e fim do seu descobrimento, e lhe deram nome o Cabo de Girão por ser daquela vez a derradeira parte e cabo do giro de seu caminho. Daqui tornaram outra vez dormir aquele dia ao ilhéu da noite passada, onde dormiram nos batéis a ele abrigados, e, ao outro dia seguinte, foram dormir aos navios e, chegando com muito prazer, acharam com muito maior os que neles ficaram, pelos verem tão contentes e satisfeitos da fertilidade, frescura e bondade, que lhe contavam do sítio da ilha e portos que deixavam descobertos, fazendo todos, juntamente, muita festa e dando muitas graças ao Senhor, pela grande mercê que lhes tinha feita.»
E, a cidade do Funchal nasceu numa «formosa e grande enseada de terra mais branda e ares frescos, toda coberta de formoso arvoredo, tão igual, por cima, que parecia feita à mão, sem haver árvore mais alta que outra, e, além de ser muito alegre à vista, vinha beber toda na água, que parecia a Natureza meter todo seu cabedal em perfeiçoar obra tão acabada. Antre este arvoredo igual e espaçoso iam entremeados alguns cedros, tão altos que se divisavam por cima das outras árvores, que eles mui bem conheciam pela experiência que deles atrás tinham, onde acharam muitos.» (As Saudades da Terra, História das Ilhas, do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscrito do século XVI, anotado por Álvaro Rodrigues de Azevedo, Gaspar Frutuoso, Funchal 500 Anos, 2008).
E, a cidade capital cresceu por mais alguns séculos!

Idem foto anterior
(Foto do autor)

No início do século XIX, a 9 de Outubro de 1803, descaiu sobre o Funchal, assim como por toda a Madeira, uma grande quantidade de precipitação, que provocou a mais horrível aluvião da história das ilhas deste arquipélago do Atlântico Norte. Segundo os cronistas desta época, só na parte baixa da cidade terão morrido 200 pessoas, calculando-se um total de 600 mortes em toda a Madeira (Carita, 1982). Foi então enviado para a recuperação geral da cidade do Funchal e da Ilha o brigadeiro Reinaldo Oudinot, acompanhado do capitão Matos de Carvalho, sendo esta «equipa reforçada» depois com o tenente Paulo Dias de Almeida, que se manteve na Ilha.
Igualmente, em Outubro de 1815, na cidade, «como em outras ocasiões aconteceu, as correntes impetuosas das ribeiras, ocasionaram os maiores prejuízos». Foi, «especialmente nalguns pontos das margens das ribeiras que não tinham muralhas a ampararem e a dirigirem o curso das águas, saíram estas fora do seu leito, galgaram os terrenos marginais e abriram novo caminho, através das ruas e casas, causando não só incalculáveis estragos, como produzindo o maior pânico entre os habitantes, alguns dos quais foram vitimas do ímpeto indomável da corrente. Foi o que aconteceu com as águas da ribeira de S. João que, procurando novo percurso, arrastaram na sua violência cerca de vinte casas desde a ponte de S. Paulo, ao fim da rua da Carreira, até á foz da mesma ribeira. Nas ruas marginais da ribeira de Santa Luzia, também foram grandes os estragos, ficando danificadas algumas casas e em alguns pontos as muralhas da mesma ribeira» conforme nos relata o Elucidário Madeirense. Sobre esta ocorrência, o tenente Paulo Dias de Almeida refere que, «em 30 de Outubro de 1815 pelas 5 horas da tarde, houve uma aluvião que levou quarenta casas e arruinou outras, inundando ruas, e se fosse à noite muita gente morreria afogada.» A «ribeira de S. Paulo» (ou ribeira de S. João), «chegou a trazer uma coluna de água e rochedos, que ocuparam a largura de 60 palmos e 30 de alto. Entre as pedras que ficaram no leito da ribeira, junto ao mar, havia uma de 20 palmos quadrados, e de 10 palmos muitas» (um palmo, igual a 22 cm). «Esta enchente durou uma hora.»
O tenente Paulo Dias de Almeida, após estes acontecimentos, na sua “Descrição de 1817”, (Carita, 1982), descreveu-nos a cidade capital da seguinte forma:
«O Funchal é a capital da Ilha. Fundada em pequeno terreno é cortado por 3 caudalosas ribeiras, a de S. Paulo» (ou ribeira de S. João), «a de  St. Luzia, e a de João Gomes. É dominada de altos montes a Norte, a Leste, os altos do Palheiro do Ferreiro, e a Oeste, pelo Pico de S. João e terreno das Angústias, terreno este onde se tem projectada a nova Cidade, e onde se tem edificado muitas casas, depois que o Bispo fez encanar as Fontes de S. João para aquele lugar, que não tinha água, concorrendo para tão boa os funchalenses portugueses, e estrangeiros, a qual foi por mim projectada e principiada em 7 de Fevereiro de 1814, correndo ao público no dia 20 de Junho do mesmo ano.
Também neste mesmo terreno das Angústias é onde se estabeleceu o Cemitério Público da Santa Casa, obra há muito tempo recomendada por Sua Magestade.»

"Terreno das Angústias" - Parque de Santa Catarina - Funchal
(Foto do autor)

Prossegue o tenente Paulo Dias de Almeida:
«O Hospital da Santa Casa é um muito bom edifício, porém em muito má posição, muito pobre de ar e sem ter onde convalesçam os doentes. Quanto seria vantajoso ao público se tivessem removido o hospital para o Convento das Freiras da Encarnação, no tempo em que elas estavam unidas com as de Santa Clara, por ser aquele o sítio mais arejado da cidade e com uma grande cerca para convalescença dos doentes.
Há três conventos de freiras e dois recolhimentos, um do Bom Jesus e outro das Orfãs, este pertencente à Misericórdia. O convento de Santa Clara é o mais rico; o das Mercês vive de esmolas e não tem rendimento algum e o da Encarnação não tem rendimento com que se possa sustentar e de cada vez mais vão-se admitindo freiras.
Há um Convento de Frades Franciscanos, em muito bom edifício.
Se algum dia se passarem as freiras da Encarnação para o Convento de Santa Clara, poderá servir este convento de hospital, como serviu no tempo dos ingleses, para o que se fez avultadas despesas dos cofres da nação, ficando o hospital para residência dos Ministros, Câmara, Tribunais de Justiça e todos os Cartórios, para não sofrerem as ruínas que sofrem estando nas casas dos tabeliães e escrivões, o que seria muito vantajoso para os povos.
A Planta, representa o estado em que a cidade ficou pelo aluvião de 9 de Outubro de 1803 e a posição das praças que guarnecem o Funchal, as quais represento separadas e com seus perfis.
A Baía do Funchal tem um bom ancoradouro. Nos meses de Inverno, todo o navio que ancorar entre a Ponta do Garajau e Ponta da Cruz, corre o risco de dar à costa, uma vez que venha vento Sul ou Sudoeste, únicos que sopram prependicularmente no porto. Não é o vento que a maior parte das vezes obriga a dar à costa as embarcações, mas sim o mar que imediatamente forma altas vagas, de maneira que se não pode dar socorro a qualquer embarcação que dele necessite. Todo o navio de guerra que quiser ancorar no porto do Funchal de Outubro até Março, deve ficar Norte/Sul com a guarita de Leste da Praça do Ilhéu e o Mirante da Dona Guiomar, Leste/Oeste com as duas Pontas do Garajau e da Cruz. Nos outros meses do Verão pode chegar-se a terra até à distância de 400 braças de fundo, evitando quando for possível, o fundear a Este da Fortaleza de São Lourenço, porque em garrando a embarcação, vai sobre a restinga da rocha mergulhada, que fica na direcção da Fortaleza de São Tiago, e as correntes sempre encostam daquela parte.»

Idem foto anterior
(Foto do autor)

«Na mesma Baía do Funchal tem um pequeno abrigo, a terra do Ilhéu, onde se abrigam pequenas embarcações, e estas devem afastar-se do Ilhéu quanto poderem, porque tem sucedido os grandes mares saltarem por cima da Praça do Ilhéu, que tem de altura 110 palmos, e meterem navios ao fundo, como sucedeu em 1803 a uma galera que ali se achava amurada.
Tem havido várias opiniões sobre o fechar-se o Porto da Pontinha da rocha do Ilhéu. Seria esta tentativa muito útil se não se opusesse a ela a grande Ribeira de S. Paulo» (ou ribeira de S. João), «porque fechada a boca do Ilhéu à Pontinha, com os entulhos que todos os anos traz a dita ribeira, em poucos anos se entulharia o Porto, e por consequência seria inútil a obra. A experiência de doze anos na Ilha me tem feito ver que as grandes enchentes das ribeiras é sempre com o vento Sul/Sudoeste e a ribeira de S. Paulo» (ou ribeira de S. João) «está muito próxima ao Porto da Pontinha, e inteiramente oposta ao Sul. É por isso que com estes tempos as ondas e ventos fazem com que os entulhos da ribeira passem pelo boqueirão do dito porto, o que não sucederia se estivesse fechado.
Na restinga da Fortaleza de São Tiago há um excelente estabelecimento, e muito sólido, para se formar um cais, conforme projecto que apresento, podendo chegar-se qualquer embarcação a descarregar as mercadorias. A Praça de S. Tiago pode servir para armazéns do depósito da Alfândega, suprindo-se esta com a bateria rasante, e ficando assim mais forte aquele ponto, porque a praça é muito acanhada e ficam os combatentes expostos aos estilhaços dos cavaleiros.
O estabelecimento do cais neste lugar tem grande vantagem, não podendo jamais ser aterrado com os entulhos das ribeiras, e a experiência tem mostrado que naquele lugar a praia não se tem alongado para o mar, o que não acontece desde o Forte Novo até à Ribeira de São Paulo» (ou ribeira de S. João), «que de 1803 a 1817, se tem alongado ao mar de 150 a 250 palmos, e progressivamente há-de ir crescendo, uma vez que se lhe não atalhe a causa.
Ao Oeste da cidade a pouco mais de meia légua, há a magnífica Praia Formosa, muito favorável a um desembarque. Uma boa fragata será bastante para arrasar os redutos e baterias que defendem esta praia, em cujo porto pode fundear uma boa esquadra. Tem muito bom fundo, e perto daquela praia fica a Ribeira dos Socorridos para se tomar água. Feito que seja o desembarque, a marcha para o Funchal é muito rápida.» (Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira da Madeira de 1817/1827, Carita, 1982).

Porto do Funchal
(Em 7 de Março de 2010 - foto do autor)

E, terminou o tenente Paulo Dias de Almeida, a sua “descrição” da cidade do Funchal, após as aluviões nos meses de Outubro, de 1803 e 1815. Este, para minimizar o impacto destes fenómenos naturais na baixa da cidade do Funchal, já tinha projectado «a nova Cidade» no «terreno das Angústias».
A cidade do Funchal, encaixada numa «formosa e grande enseada de terra mais branda e ares frescos, toda coberta de formoso arvoredo, tão igual, por cima, que parecia feita à mão, sem haver árvore mais alta que outra, e, além de ser muito alegre à vista, vinha beber toda na água, que parecia a Natureza». Dela, desembocam no mar «três grandes e frescas ribeiras», como nos conta Gaspar Frutuoso. Na verdade, a «formosa e grande enseada de terra mais branda e ares frescos», para além da actividade vulcânica que lhe deu origem, foi formada à conta das suas «três grandes e frescas ribeiras» com a ajuda cíclica das aluviões.
O Funchal em particular e a Madeira em geral, são o que são, na sua elegância, esculpida pelos citados fenómenos naturais, que os madeirenses têm de partilhar de gerações em gerações, deparando-se de tempos em tempos, com uma “nova Cidade”.

(À aluvião de 20 de Fevereiro de 2010.)

Cidade do Funchal - Madeira
(Em 7 de Março de 2010 - foto do autor)


Bibliografia:

CARITA, Rui (1982). Paulo Dias de Almeida, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros e a Descrição da Ilha da Madeira de 1817/1827. Secretaria Regional de Turismo e Cultura - Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Funchal. pp. 57 e 59. Funchal.
FRUTUOSO, Gaspar (2008). As Saudades da Terra, História das Ilhas, do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscrito do século XVI, anotado por Álvaro Rodrigues de Azevedo e introdução de Alberto Vieira. Fac-símile da edição de 1873, da Empresa Municipal Funchal 500 Anos. pp. 36 a 40. Funchal.
SILVA, Padre Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de, (1984). Elucidário Madeirense. Fac-símile da edição de 1946. Secretaria Regional de Turismo e Cultura - Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Funchal.

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